A web 2.0 instituiu novas dinâmicas de cultura participativa. Se esta ideia de que todos podemos participar na sociedade não é nova – já tivemos no passado as zines e as rádios pirata, por exemplo –, a revolução digital deu-nos novas formas de conexão, informação mais acessível e uma capacidade de juntar volumosas comunidades em torno de um determinado tópico ou movimento social.
Todavia, esta nova cultura participativa deixou de acontecer em territórios que nós mesmos controlamos para se dar em plataformas que nos dão a ilusão de auto-controlo mas que, em boa verdade, são controladas por um conjunto limitado de grande tecnológicas com tiques monopolistas.
O espaço que pensamos ser público – uma nova polis – é, na verdade, mediado por algoritmos que essas empresas – ou seja, homens brancos num escritório algures nos EUA – criaram para seleccionar a informação que pessoas de várias partes do mundo e de diferentes contextos lêem e as conexões que fazem, levando-as inevitavelmente para bolhas cada vez mais fechadas.
A relação entre utilizadores e as empresas proprietárias das plataformas está longe de ser equilibrada, com as últimas a terem o poder de definir as regras pelos quais os primeiros se devem reger. Essas regras – por vezes atribuídas a uma entidade externa e autónoma, o algoritmo, e outras vezes assentes em convenções, como a proibição do mamilo feminino no Instagram – são pouco participadas pelos utilizadores. Henry Jenkins, no capítulo “Onde a Web 2.0 deu errado”, do livro Cultura da Conexão (2015), escrito em co-autoria com Sam Ford e Joshua Green, fala numa relação entre utilizadores e empresas de media baseada numa nova economia moral.
O conceito de economia moral, cunhado pelo historiador E.P. Thompson em 1971, entende as relações económicas entre consumidores e produtores como um equilíbrio entre ambas as partes, assente em normas sociais e entendimentos mútuos. Thompson usou esta ideia para falar das relações entre as classes de trabalhadores e os proprietários de terras; mas ela pode aplicar-se hoje às transacções entre utilizadores e tecnológicas – afinal, os primeiros “trabalham”, produzindo conteúdo e dados, nas “terras” dos segundos.
Numa economia moral, os interesses de todas as partes encontram-se de um modo justo e benéfico para ambos, as relações assentam na confiança e, no caso de discórdia, propõem-se entendimentos alternativos. Como exemplifica Jenkins, numa loja de bairro, um pequeno comerciante dificilmente irá enganar o cliente porque lhe interessa uma relação continuada com esse cliente e, possivelmente, com os seus amigos. O autor aborda a ideia de economia moral no contexto da partilha de conteúdo pelos internautas e na mediação que as plataformas de media – Facebook, Instagram, YouTube, Twitter… – fazem desse conteúdo de modo a garantir que os direitos de autor definidos pelos grandes detentores da cultura são respeitados. Todavia, é possível aplicar a economia moral ao entendimento no geral entre os internautas e essas empresas.
O conteúdo que produzimos online pode ser considerado trabalho que damos de borla a essas plataformas. Desse ponto de vista, nós enquanto utilizadores (ou, melhor, produsers – produtores + utilizadores) podemos ser vistos como uma commodity, uma matéria-prima básica que pode ser processada de forma industrial e que tem valor apenas em grandes quantidades. Mas essa produção e partilha de conteúdo pode ser, também, motivado por interesse pessoal ou por interesse comunitário. Estas duas perspectivas podem coexistir e podem ser entendidas como uma economia do commodity, por um lado, em que as trocas têm um valor comercial, e uma economia do dom, baseada em trocas com um valor meramente social. Esta pode ser a diferença entre um feed do Instagram e a página inicial da Wikipédia. Em ambas as “economias”, o que muda é a forma como as plataformas se relacionam com o utilizador.
De notar que na Wikipédia não existe um algoritmo com o intuito de extrair o máximo de valor das pessoas que usam o serviço, podendo esta ser um exemplo de inteligência colectiva, isto é, a partilha de conhecimento individual para chegarmos a um conhecimento maior. No Instagram podemos ter uma conta onde publicamos conteúdo com esse intuito de partilhar conhecimento, mas não deixamos de estar expostos a um capitalismo de vigilância. Se, por um lado, na nossa relação com o Instagram existe uma doação de trabalho e de dados que serão explorados pela empresa com fim à obtenção de receitas (e, como fim último, de lucro), por outro, existe uma aceitação de um conjunto de regras e valores morais, convencionais, definidos pelo Instagram e pelos quais a sua “sociedade” digital se deve reger – como é o caso icónico do mamilo feminino não ser permitido ao contrário do que acontece com o mamilo masculino. Se não aceitarmos esses termos e condições, não poderemos usar o Instagram – não poderemos participar na sua “sociedade”.
Em teoria, os utilizadores poderiam juntar-se e contestar essas imposições das plataformas, procurando, como numa economia moral acima descrita, encontrar um ponto de equilíbrio com a outra parte, um novo entendimento. Todavia, as comunidades digitais são demasiado fragmentadas e dispersas para conseguirem reivindicar junto das entidades cooperativas o quer que seja. Quebrar esta relação desigual seria fundamental para, talvez, rectificar problemas da web 2.0 enumerados no início deste texto. Jenkins, no capítulo supra referido, puxa outro conceito pertinente: o do contrato social, uma perspectiva contratualista da ética que encontramos em sociólogos como Rousseau. Rousseau, que inspirou a Revolução Francesa, entende a existência de um contrato social, abstracto, em que enquanto indivíduos atribuímos a uma entidade exterior (um Estado) determinados direitos e ganhamos outros de volta, permitindo que a sociedade como um todo possa funcionar. Segundo esta ideia de contrato social, abdicamos de um direito de defesa básico, delegando-o às instâncias judiciais, para receber um ambiente se segurança e de paz na sociedade. Se esse Estado não cumprir com os seus deveres, os contrato rompe-se.
No caso das plataformas digitais, a defesa de um novo contrato social poderia redistribuir direitos e deveres entre plataformas e utilizadores, o que se poderia traduz numa nova economia moral, permitindo uma melhor convivência entre todas as partes e relações de troca mais justas ao nível da cultura participativa.
Nota: o presente texto não pretende traçar qualquer solução concreta para os problemas da web 2.0; apenas navegar entre alguns conceitos na tentativa de traçar algumas pistas que poderão servir de rascunho a um pensamento mais aprofundado que daqui poderá resultar no futuro.