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Crise existencial

Quando me perguntam o que faço, não sei bem o que responder. Costumo fugir à palavra “jornalista” e optar por “redactor” ou “criador de conteúdos”, consoante o contexto e o interlocutor. Mas, às vezes, “jornalista” acaba mesmo por ser a apresentação mais fácil e tenho nesses momentos um certo sentimento de culpa – como se estivesse a usar uma profissão que não me pertence. Mas porque é que, simplesmente, não pode ser jornalista quem faz jornalismo?

No meu entender, o acesso à profissão é ditado por regras desadequadas, burocráticas e corporativistas. É jornalista – com os direitos e deveres que tal implica – quem pode ter um pequeno cartão conhecido por Carteira Profissional de Jornalista e atribuído pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Portanto, à luz da lei, é jornalista quem tem Carteira Profissional. Uma habilitação académica na área, como uma licenciatura, não é requisito para o acesso à Carteira e, por isso, à profissão. Existem duas formas: 1) fazer um estágio profissional num órgão de comunicação social durante 12 meses, o que garante primeiro acesso à Carteira de estagiário e depois à Carteira “verdadeira” de jornalista; ou 2) ser director de um órgão de comunicação social, sendo que, neste caso, se recebe a Carteira de “equiparado a jornalista” – tem uma cor diferente da “verdadeira” mas vem com os mesmos direitos e deveres.

António Pedro Abreu poderia ser jornalista porque criou e registou no final de 2019 na ERC (Entidade Reguladora Para A Comunicação Social) o Notícias Viriato, um site que o regulador considerou uma “publicação periódica de informação geral” mas que o sociólogo Gustavo Cardoso, do laboratório de investigação MediaLab do ISCTE, não tem dúvidas quanto a tratar-se de “um site de propaganda” que partilha “uma visão ideológica que o afasta de poder ser um órgão de comunicação social”. Por ser director de um órgão de comunicação social, António Pedro Abreu poderia receber da CCPJ uma carteira profissional sem dificuldade, mas o mediatismo em torno de todo este caso – que levou a ERC a ser chamada a uma audição parlamentar em Maio de 2020 – poderá ter levado a CCPJ estar mais atenta e a a rejeitar o pedido de carteira do director do Notícias Viriato.

Outro caso que se tornou conhecido foi o de Rui Cruz, autor do site Tugaleaks, reconhecido também pela ERC como um órgão de comunicação social; Rui já teve Carteira de “equiparado a jornalista” devido ao seu cargo de director do Tugaleaks, perdeu-a em 2015 na sequência de um processo-crime mas recuperou-a no ano seguinte, mantendo-a até hoje. Podemos considerar o Tugaleaks um órgão de comunicação social ou, em linguagem de ERC, uma “publicação periódica de informação geral” com todas as suas características e o seu mérito – mas será que podemos dizer que é jornalismo? A dúvida é pertinente e existe inclusive em relação ao site que serviu de inspiração ao Tugaleaks, o Wikileaks.

Na tal audição parlamentar à ERC, que decorreu em Maio, João Pedro Figueiredo, do Conselho Regulador, explicou aos deputados que o regulador não faz uma avaliação do conteúdo das publicações, limitando-se a proceder ao registo à luz da legislação em vigor e salientou a urgência de actualizar a definição de órgão de comunicação social, distinguindo, por exemplo, as publicações jornalísticas das não jornalísticas. Nada de novo. Em 2015, a ERC publicava um estudo sobre novos média no qual dizia ser necessário “redefinir o conceito de órgão de comunicação social, no sentido de estabelecer quais os conteúdos que estarão sujeitos a regulação” e “definir diferentes níveis de regulação, consoante a natureza de cada órgão de comunicação social”. Nada mudou. Em Fevereiro de 2020, um comunicado do Conselho Regulador da ERC referia que “apenas distinguindo e qualificando o que é e não é jornalismo se torna possível identificar e credibilizar junto do público a informação que circula pelos novos meios de comunicação”; lançava um apelo aos órgãos legislativos para “que promovam, com a maior urgência, um novo enquadramento jurídico das actividades de comunicação social que leve em linha de conta a necessidade de promover: a) a definição de órgão de comunicação social; b) um novo regime de classificação das publicações e dos novos fenómenos (des)informativos; c) a criação de base legal inequívoca e a correspondente adequação do sistema de registos dos media às novas realidades”. Parece ser reconhecido existir um problema e que o quadro legislativo e regulatório estão desactualizados.

Portanto, António Pedro Abreu não foi jornalista por acaso, Rui Cruz é jornalista. E eu? E os que fazem jornalismo mas não podem ser jornalistas? O Estatuto do Jornalista é claro: “são considerados jornalistas aqueles que, como ocupação principal, permanente e remunerada, exercem com capacidade editorial funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados a divulgação, com fins informativos, pela imprensa, por agência noticiosa, pela rádio, pela televisão ou por qualquer outro meio electrónico de difusão”. Parece-me ser o meu caso.

A última actualização ao Estatuto do Jornalista, no qual a CCPJ baseia a sua actividade, data de 1999. Nele encontram-se estipuladas as incompatibilidades com o jornalismo que impedem o acesso à profissão; um dos pontos refere: “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”. Se em relação à parte das relações públicas ou de assessoria de imprensa encontro justificações plausíveis, em relação ao resto tenho muitas dúvidas. O ponto super referido foi a incompatibilidade levantada pela CCPJ no pedido que fiz de um título profissional no final de 2019. Foi-me explicado que desenvolver campanhas de angariação de fundos para o meu próprio órgão de comunicação social, estratégias de distribuição dos meus próprios conteúdos ou o desenvolvimento de novos produtos editoriais como parte de uma estratégia de crescimento da minha publicação é incompatível com a actividade de jornalista. “Existe na CCPJ uma enorme compreensão para a realidade da situação do jornalismo nas pequenas empresas onde a falta de recursos humanos implica uma multiplicação de tarefas. Mas para que a própria actividade jornalística do órgão de comunicação seja credível e credibilize o jornalismo, recomenda-se que a actividade editorial esteja separada das funções de gestão e de promoção publicitária do órgão de comunicação social”, disseram-me mais ou menos assim.

No fundo, a actual definição perspectiva o jornalista como uma vocação, uma profissão “pura” que não pode ser misturada com tarefas “desviantes”. O jornalista só pode fazer jornalismo. Isso é possível numa estrutura empresarial como são aquelas que suportam os principais órgãos de comunicação social em Portugal, mas deixa desprotegidos aqueles que fazem jornalismo e são reconhecidos como jornalistas em projectos alternativos de comunicação social. Considerando uma empresa ou associação jornalística com apenas duas pessoas, não é possível uma estrutura compartimentada em diferentes departamentos. As duas pessoas vão partilhar naturalmente funções, escrevendo peças jornalísticas, mas também fazendo design, programando o seu site, desenhando estratégias de distribuição dos conteúdos nas redes sociais e estabelecendo linhas para o crescimento e sustentabilidade futura do próprio projecto. Pode também ser vontade das duas pessoas trabalhar numa estrutura sem hierarquias – um modelo horizontal e cooperativo.

O actual enquadramento legal e regulatório não prevê formas diferentes das tradicionais de fazer jornalismo. É redutor no que toca aos média alternativos, às chamadas start-ups jornalísticas, apresentando-lhe um sistema complexo e no qual não são reconhecidas. A ERC, por exemplo, define a existência de um director, que o Fumaça ou o Jornal Mapa definiram por mera burocracia pois ambos acreditam na partilha das decisões entre a sua redacção. No Shifter, onde estão agora três pessoas, também não existem hierarquias corporativas. No Interruptor, a mesma pessoa desdobra-se em tarefas editoriais e de gestão do projecto, tendo posto cá fora algumas das melhores peças de jornalismo cultural que Portugal viu nos últimos tempos.

Creio que os deveres do jornalista podem ser respeitados com o exercício de outras funções além do jornalismo. Resolver questões de contabilidade ou definir uma estratégia de crescimento para o projecto jornalístico não influencia o “rigor e isenção” ou compromete a “independência e integridade profissional”. Um jornalista conseguirá cumprir os seus deveres e ao mesmo tempo concentrar-se na comunicação do seu projecto, na distribuição dos trabalhos jornalísticos que escreve ou na definição de uma estratégia de sustentabilidade que garanta que o meio que criou e para o qual escreve não vai desaparecer. Não me parece ser necessário infantilizar a profissão de jornalista; tratar os jornalistas como crianças que podem rapidamente perder o norte deontológico.

Não deveria ser jornalista quem faz jornalismo, ponto final? No exemplo de uma start-up jornalística onde os dois fazem jornalismo, no entanto, um deles, por ser director e ter, por isso, título profissional, beneficia do direito de acesso às fontes de informação é assegurado aos jornalistas, pode candidatar-se a bolsas ou assinar peças para receber prémios da área, tem protecção legal, por exemplo, com sigilo profissional. O segundo, também com trabalhos jornalísticos publicados, não recebe os mesmos direitos, não ficando também obrigado aos mesmos deveres e ao Código Deontológico – mas faz jornalismo e deveria poder ser jornalista. Segundo a CCPJ, “o exercício da profissão de jornalista sem a devida habilitação constitui legalmente contra-ordenação punível com coima: de € 1.000 a € 7.500, para o jornalista sem a habilitação; de € 2.500 a 15.000, para as empresas que mantenham ao seu serviço jornalista sem habilitação”. Porquê?